TEORIA E PRÁTICA
Por Clóvis Peres
Urano, o céu
E tanto mesmo nas idéias pequenas que já me aborrecendo, e por causa de tantos fatos que estavam por suceder, dia contra dia.1
Entre a Lua, a que passa, e o Saturno, o que dura, se desenvolve Urano, o entendimento que nasce do conhecimento da regularidade que existe sob a aparente confusão dos fenômenos da natureza. Avistado em 13 de março de 1781, na época das grandes Revoluções, que pretendiam novo calendário, simboliza o progresso que irrompe da velha regularidade estabelecida pelos antigos. Aqui o passado determina o que é e o que vai ser, e os signos que expressam essa relação, entre o que se modifica e o que persiste, são Câncer/Capricórnio/Áries /Libra: a sensibilidade e a intuição de um ambiente sempre móvel, em transformação; a fixação lógica dessas impressões conforme a necessidade; e a inovação na situação em que se encontra. O nascimento, a memória, a subjetividade, a força motriz, o ímpeto e a motivação.
A primeira safira é Keter, a Coroa, origem de tudo, vácuo primordial. Primeiro criou um ponto, que se tornou o Pensamento, onde imprimiu todas as figuras... Era e não era, encerrado no nome e esquecido no nome, não tinha ainda outra designação que “Quid”, puro desejo de ser chamado por um nome...No princípio traçou signos no vento, uma chama escura brotou de seu fundo mais secreto, como uma névoa incolor que desse forma ao informe, e mal esta começou a expandir-se, em seu centro surgiu um manancial flamante que se derramava para iluminar as safiras inferiores, descendo em direção ao Reino.2
O princípio da revolução e do progresso, do que irrompe sob a regularidade, estabelecida há tanto tempo, e que já não dá conta daquilo que ela mesma possibilitou existir: a revolução industrial na Inglaterra, que através da máquina e da fábrica transforma a natureza no mundo humano, a fundação dos Estados Unidos que propaga a ideia da liberdade religiosa, da liberdade de imprensa e do júri popular, e a revolução Francesa, que declara que existem direitos humanos universais, guilhotina o rei, expulsa os padres e estabelece a República. Os franceses e os norte-americanos têm sua data nacional em Julho, no verão, no signo de Câncer, da Lua e das águas que sempre fluem por entre as pedras, dissolvendo o poder da estrutura, que o astrólogo chama de Saturno, sobre a vida subjetiva dos indivíduos. No Brasil colonial agiam os Inconfidentes que escondiam, dos agentes de Portugal, livros científicos e o Espírito das Leis, do Montesquieu, onde liam:
O primeiro é o espaço: a República deve ter uma expressão territorial assaz modesta, há que ser pequena enquanto a Monarquia precisa de um espaço grande e o Despotismo de um espaço ainda maior. Em segundo lugar, na República tem que haver uma relativa igualdade, na monarquia desigualdade em benefício de uma nobreza que é necessária para a própria existência do poder real, no Despotismo aquela igualdade que se dá quando todos são escravos.
Em terceiro lugar, na República, as leis são expressão da vontade popular, enquanto na Monarquia são expressão da vontade do rei, limitado, contudo, pelas leis fundamentais (ele é obrigado a governar segundo leis fixas e estáveis, que são aplicadas por um poder judiciário independente) e o Déspota governa por decretos ocasionais e improvisados. Em quarto lugar, são diferentes as forças de integração social: na República é a virtude que leva os cidadãos a antepor o bem do Estado ao interesse particular; na Monarquia é o senso de honra, da nobreza que é sustentáculo, e ao mesmo tempo limite do poder do rei; no Despotismo é o medo que paralisa os súditos.” 3
Netuno, o mar
Somente com a alegria é que a gente realiza bem – mesmo as mais tristes ações. 4
Entre Mercúrio, o que circula entre, e Júpiter, o que se dirige a algo, existe o Netuno, a compreensão, o outro lado da ação, que nasce da edição jupiteriana das informações coletadas por Mercúrio. Avistado em 24 de setembro de 1846, na época da afirmação da Fábrica e da Ciência, simboliza as novas formas de ação individual e social, outro modo de ser, adequados à Cidade mecânica que, nesse momento, se afirma, definitivamente, sobre o campo, exigindo nova afeição, novas leis e regulações para o convívio da multidão que se aglomera. Aqui o presente determina o que foi e o que será, e os signos que expressam essa relação, entre movimento e sentido, são Gêmeos/Sagitário/Peixes/Virgem, signos do que se pode e do que não se pode nesse momento e lugar: ação e reação, comunicação e informação, individual e coletivo, a guerra e a paz.
“Na segunda safira o Alef tenebroso se transmuda no Alef luminoso. Do ponto obscuro brotam as letra da Torah, o corpo são as consoantes, o hálito as vogais, e juntas acompanham a cantilena do devoto. Quando a melodia dos signos se move movem–se com ela as consoantes e as vogais. Surge então Hokmah, a sabedoria, a sapiência, a idéia primordial na qual tudo se contém como num escrínio, pronto para desenvolver-se na criação. Em Hokmah está contida a essência de tudo o que se seguirá...”5
O princípio da ação conjunta, baseada na informação, da multidão em movimento, da matilha, do enxame e do cardume. Os anos ao redor de 1846 são chamados de Primavera dos Povos, pois que as monarquias ainda existentes são depostas pela população armada e as repúblicas e as monarquias limitadas se estabelecem definitivamente no continente europeu; aqui, no Brasil, se encerra a Guerra dos Farrapos, que proclamara a República do Piratini e, sob pressão da indústria inglesa, se proibe o tráfico de escravos. Darwin, Marx e Kardec procuram representar o que se apresenta, seja através de uma origem das espécies a partir da seleção natural, de uma redenção dos trabalhadores industriais no paraíso comunista, ou do serviço dos espíritos imateriais evoluídos para com os espíritos encarnados e sofredores.
Plutão , o inferno
Deus é muito contrariado. Deus deixou que eu fosse, em pé, por meu querer, como fui.6
Entre Vênus, a que deseja, e Marte, o que quer, irrompe o Plutão, a paixão, o fim que determina procedimentos e programas, de modo a atingir objetivos determinados. Foi avistado em 18 de fevereiro de 1930, quando a engenharia social procura estabelecer a sociedade perfeita, nazista ou comunista, e, ao mesmo tempo, produz-se a primeira reação nuclear em cadeia, em laboratório. Aqui o futuro determina e o que foi e o que é, e os signos que expressam essa relação, entre o desejo e a sua mecânica, são Leão/Aquário/Touro/Escorpião, a técnica, o desenho, a ferramenta e a programação.
Binah é o palácio que Hokmah constrói expandindo-se do ponto primordial. Se Hokmah é a fonte, Binah é o rio que dele brota dividindo-se depois em seus vários ramos, até que todos vão desembocar no grande mar da última safira – e em Binah todas as formas já estão prefiguradas. 7
O princípio da paixão, do obscuro objeto do desejo, daquilo que toma conta de todas as forças e as dirige, implacável, até o fim desejado: Getúlio Vargas assume o poder no Brasil, Hitler na Alemanha, Stalin na Rússia, Mussolini na Itália, cada um atravessado pelo desejo da multidão amplificado pelo rádio; e a vontade de saber que conduz à fissão nuclear e à bomba atômica, construída à imagem e semelhança das estrelas e das paixões que explodiram na Segunda Guerra Mundial.
Urano e Plutão
A conjunção de planetas é sinal de início, novo começo em relação à conjunção anterior, como a Lua, que a cada mês, é nova, crescente, cheia e minguante; a última conjunção de Urano com Plutão, antes de 1965/66, ocorreu no signo de Áries, entre 1850 e 1851, época que se convencionou chamar de Segunda Revolução Industrial, movida à eletricidade, petróleo e aço, a partir dos quais a cidade, os meios de transporte, as técnicas de iluminação, de alimentação e de vestuário experimentam as transformações mais radicais de todos os tempos.
Em 1876, a quadratura crescente de Urano em Leão com Plutão em Touro, em signos fixos (que ordenam procedimentos, protocolos e programas em função do fim a ser atingido), simboliza afirmação crescente do domínio matemático-lógico, técnico, sobre a circularidade mecânica dos processos naturais: em março de 1876 Alexander Graham Bell patenteia o telefone, e, nos Estados Unidos, o presidente Grant, junto com Dom Pedro Segundo, no dia 10 de maio do mesmo ano, inauguram a Exposição Universal da Filadélfia, chamada, pelos norte-americanos, de “Exposição Internacional de Arte, manufaturas e produtos do solo e das minas”. Em fevereiro de 1878 Thomas A. Edison patenteia o fonógrafo; e, no Brasil, na medida em que os negros vão sendo liberados por pressão da Inglaterra que se industrializa, começa a imigração europeia para substituir a mão de obra escrava, agora relegada ao cortiço: o Império se arruína e a República se esforça por nascer.
Entre 1930-33 o ciclo, iniciado em 1850, atinge a sua fase minguante e Urano, em Áries, quadra Plutão, em Câncer, no ano em que Tombaugh o avista. Desmantelam-se os indivíduos e as individualidades, engolfadas pela multidão comunista ou nazista, quais formigas em migração, devorando tudo o há pela frente. Hitler torna-se chanceler no fim de janeiro de 1933, diminuindo o indivíduo em função de uma totalidade biológica, enquanto Stalin, no Leste, diminuía o indivíduo em função de uma totalidade ideológica. Aqui começa a dança da morte em que o último passo será dado em Hiroshima e Nagasaki, em agosto de 1945.
Urano volta a conjuntar Plutão em 1965/66, caracterizando o que veio, depois, a ser chamado de “anos 60”, onde Beatles, Rolling Stones, João Gilberto, Tim Maia e Roberto Carlos, os Mutantes, Caetano e Gil, Chico Buarque e Milton Nascimento compõem a trilha da Revolução, que todos amam. Nascem as multinacionais, geridas por generais, e o grande exércitos, gerida por executivos: cada unidade norte-americana, no Vietnam, deve apresentar uma determinada cota ou produção de vietcongs mortos num tempo determinado; se espalham o roquenrol, o sexo e as drogas, anos loucos em que todos se engajavam à esquerda ou à direita, com russos comunistas ou americanos capitalistas, e a luta era conduzida em cada esquina do mundo, o que, depois da queda do muro de Berlim e da derrota dos russos, se transforma no que hoje se chama de terrorismo.
Agora, entre 2012 e 2015, Urano, em Áries, faz uma quadratura crescente com Plutão, em Capricórnio, significando, ao contrário dos anos 30 do século passado, a afirmação do indivíduo sobre o grupo em que nasce e morre. A fragmentação da multidão em milhões de usuários particulares virtualmente conectados se impõe sobre as massas que, no século vinte, iam às ruas sob uma bandeira qualquer, e, agora, muitas bandeiras distintas se juntam nas ruas em movimentos cada vez mais fugazes, efêmeros, na velocidade eletrônica. Se lá nos anos trinta do século passado a coletividade se impôs sobre o indivíduo, aqui o indivíduo particular se impõe sobre a coletividade, produzindo uma sensação de anarquia e caos em relação às estruturas com as quais se está acostumado a lidar. Cada um persegue o seu próprio desejo e prazer, e a velha sociedade civil se torna apenas uma função desses desejos particulares irreprimíveis, porque altamente estimulados pelo comércio que domina sobre a agricultura e a indústria: o consumo e a produção das coisas obedecem à troca universal, ao tráfico internacional de tudo que possa ser traficado, e a guerra se torna trivial, local, sem campo de batalha definido.
Nas décadas de 1850 e 1960 a teoria e prática se articulam de modo simples e direto, e todos têm a certeza de que as suas ações concorrem para um grande acontecimento: em 1850, da excelência industrial e mecânica, que atinge o máximo na Grande Guerra (1914-1945) e, em 1960, da comunicação universal, da excelência ética, da transparência libertária que agora se acinzenta, amortalha. Mas, em 1876, 1933 e 2012/15 a teoria e a prática estão separadas, ou se deseja ou se pensa, ou se move pela paixão ou se move pela razão, e não se consegue, como nos anos 50 do século XIX e nos anos 60 do século XX, articular a duas realidades numa conduta revolucionária, adequada às transformações mecânicas e eletrônicas em curso.
No dia 16 de março de março de 2015 ocorre o último dos sete encontros de Urano com Plutão na quadratura atual, e, nos anos de 2016 e 2017, Saturno, em paralelo com Plutão, aprofunda de forma intensa as determinações até aqui definidas. Como se, esvaziado de pensamento e desejo, alguém visse, pela primeira vez, o mundo ao redor de si, vazio, só potência de ser.
Entre março e junho de 2015 os inícios se apresentam para todos nós, configurados pelo trígono de Júpiter com Urano em 3 de março e 22 de junho (Saturno em trígono com Urano em dezembro de 2016), assim como pelas conjunções de Marte e Sol com o próprio, em 11 de março e 6 de abril; nesses dias se intensifica o desejo do novo e do inusitado, do corte inaugural de uma sequência qualquer. Júpiter em Leão e Urano em Áries simbolizam a resolução do enigma proposto pela quadratura nesses últimos anos, como se a vontade o conhecimento de cada um e de todos fossem submetidas a certo acordo: já que agora e sempre nenhum desejo se sacia e nenhum pensamento se sustenta, quem sabe se pode inventar outro mundo, abrir outro caminho, nem tanto ao céu e nem tanto ao inferno, nem tanto ao oriente nem tanto ao ocidente. Jamais à esquerda burocrática do “deixa que o Estado cuide de ti”, revolucionária, tampouco à direita informal do crime organizado. Na segunda metade do ano aumenta a tensão entre Júpiter e Saturno (3/7/15, 23/3 e 26/5/16) e entre Saturno e Netuno (26/11/15, 18/7 e 10/9/16), que simbolizam quedas e quebras, assim como confusão, depressão e desorientação. Mas, também, apenas os problemas que decorrem necessariamente das afirmações que se pode fazer entre março e junho.
Nesse mundo enredado, quanto mais descentralizado, flexível e adaptável for o laço entre o exercício do poder e o cultivo do pensamento, maior será a capacidade de sobrevivência e mesmo de construção novos caminhos sobre esses tão antigos em que agora desandamos. Um Estado centralizador, burocrático, pesado e venal, tende a explodir ou, no pior dos casos, definhar sobre a falta de sentido que adoece a todos que não conseguem escapar ou se defender de sua virulência. A relação política, que é relação de forças, tende a ser descentralizada, informal, leve e clara, sem a necessidade das figuras, ícones e desenhos com que agora se sujeitam crianças à universal comunicação, Espírito Santo finalmente redimido da vontade e da sabedoria, conexão absoluta dos componentes da matilha, do bando felino e do cardume nas águas.
Notas
1. Rosa, Guimarães, Grande Sertão: Veredas, Nova Fronteira 1985, p. 390.
2. Eco, Umberto, O Pêndulo de Foucault, Record 1989, p. 23-24
3. Cf. MATTEUCCI, Nicola. República. In Dicionário de Política. Brasília: UNB, 1986, p. 1.108.
4. Rosa, Guimarães, Grande Sertão: Veredas, Nova Fronteira 1985, p. 390.
5. Eco, Umberto, O Pêndulo de Foucault, Record 1989, p. 46
6. Rosa, Guimarães, Grande Sertão: Veredas, Nova Fronteira 1985, p. 391.
7. Eco, Umberto, O Pêndulo de Foucault, Record 1989, p. 154
Clovis Peres
12 de março de 2015, 18:27
São Leopoldo – RS